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A IRMÃ DE LEITE DA PRINCESA

Romance Histórico
Portugal, 1845-1913


autor
Jorge Francisco Martins de Freitas

Episódio 5


PROCLAMAÇÃO


O dia amanhecera cinzento, como se a natureza pressentisse que um nefasto acontecimento se iria abater sobre Portugal.

No Palácio das Necessidades, D. Maria II entra, pela décima primeira vez, em trabalhos de parto.

Ladeada pelos melhores médicos de Lisboa, a soberana sofre, atrozmente, com intensas dores.

Passados alguns minutos, que parecem à rainha longas horas, nasce Eugénio, o seu novo filho. Infelizmente, pela terceira vez consecutiva, D. Maria II dá à luz uma criança já sem vida.

Resta aos médicos tentar salvar a rainha que, com o esforço realizado, se apresenta extremamente debilitada, podendo, a qualquer momento, sucumbir.

Às onze horas e quinze minutos, sentindo que a morte se aproxima a passos largos, D. Maria II manda chamar o marido à sua presença.

D. Fernando, muito pálido, entra nos aposentos reais, não conseguindo evitar que lágrimas fluam pelo seu rosto. Enquanto acaricia, com ternura, as mãos da esposa, esta transmite-lhe, pausadamente, alguns conselhos sobre a forma como deverá desempenhar as funções de regente do Reino, enquanto D. Pedro V não atingir a maioridade.

Seguidamente, a soberana solicita a comparência dos filhos, mas, quando estes chegam junto dela, já havia deixado este mundo, recordando, como última imagem, as longínquas terras brasileiras que a viram nascer.

Os infantes, com intensa mágoa refletida nos rostos, beijam, carinhosamente, a falecida rainha.

D. Antónia já se afeiçoara bastante à sua verdadeira mãe, não obstante o seu coração se encontrar dividido entre esta e Ana Francisca. Acompanhada de Maria isabel, ambas permanecem junto ao dossel real.

D. Fernando tenta consolar cada um dos infantes pela morte da mãe, distribuindo afetuosos abraços e beijos. Quando chega junto das irmãs de leite, após acariciar as rosadas faces de D. Antónia, poisa, durante alguns segundos, a mão sobre a cabecita de Maria Isabel, recordando que D Maria II sempre aparentara nutrir por ela uma afeição quase idêntica à que detinha por todos os filhos.

Desde que a rainha de Portugal e dos Algarves começara a sentir dores de parto, o Conselho de Estado encontrava-se reunido no Palácio das Necessidades. Constituído, entre outras personalidades, pelo Duque de Saldanha, presidente do Conselho de Ministros; Rodrigo da Fonseca, ministro do Reino; Fontes Pereira de Melo, ministro das Obras Públicas e Frederico Guilherme da Silva Pereira, cardeal-patriarca de Lisboa; é facultado, a cada uma destas individualidades, o acesso à câmara real, a fim de beijarem protocolarmente a mão da falecida rainha. Após este ato solene, dirigem-se à presença de D. Fernando, beijando igualmente a sua mão, na qualidade de regente do Reino de Portugal, função que havia assumido devido à menoridade do futuro rei, nos termos da lei de 7 de abril de 1846, confirmada pelo artigo primeiro do ato adicional à Carta Constitucional.

Ainda combalido, o regente declara:

— É meu desejo manter em funções o atual governo, que foi nomeado pela minha augusta esposa!

Os elementos do conselho de Estado agradecem, beijando novamente a mão do regente, e dirigem-se, de seguida, à presença de Sua Alteza Real D. Pedro V que assumirá a governação do país assim que atingir, dentro de dois anos, a maioridade.

Nos termos da mesma Carta Constitucional, o regente procede ao juramento inerente às suas novas funções:

— Juro manter a religião católica apostólica romana, a integridade do Reino, observar e fazer observar a constituição política da nação portuguesa e mais leis do Reino e prover ao bem geral da nação, quanto em mim couber. Juro, igualmente, guardar fidelidade a el-rei o senhor Dom Pedro Quinto, meu sobre todos muito amado e presado filho, e entregar-lhe o governo logo que chegue à maioridade.

No dia seguinte, tiros compassados de artilharia, bandeiras a meia-haste e o constante repique de sinos anuncia à população a morte de D. Maria II.

A dor abate-se sobre os portugueses que, na sua maioria, dedicavam à soberana grande afeição, não só graças aos contactos diretos que esta estabelecia com os súbditos quando saía à rua, em Lisboa, para passear ou frequentar teatros e outros espetáculos culturais, mas, principalmente, pelas notícias que chegavam ao seu conhecimento transmitidas maioritariamente de boca em boca, já que o acesso aos jornais abrangia apenas a restrita faixa da população que sabia ler.

No dia em que o cortejo fúnebre sai do palácio para a última morada da rainha, um sepulcro no Panteão Real dos Bragança, situado no interior do mosteiro de São Vicente de Fora, as lojas de toda a cidade, assim como os serviços públicos, fecham as suas portas.

A população de Lisboa e arredores enche as ruas para ver passar os restos mortais da soberana, curvando-se, respeitosamente, perante a carruagem que transporta a urna, puxada por oito garbosos cavalos brancos.


Chegada a São Vicente de Fora dos restos mortais de D. Maria II

Quando o cortejo atinge o Mosteiro de São Vicente de Fora, o povo tem de ser contido pela guarda real a cavalo, pois todos querem se aproximar da defunta rainha, principalmente quando, aos ombros de militares trajando uniformes de gala, o féretro dá entrada no templo.

Milhares de populares são, então, autorizados, à vez, a entrar no templo para prestar uma última homenagem a D. Maria II.

Segue-se uma missa de corpo presente, celebrada pelo Cardeal-patriarca de Lisboa, na presença apenas dos elementos mais chegados da família real.

No preciso momento em que os restos mortais da rainha são colocados no túmulo, um canhão, trazido expressamente para junto do mosteiro, lança três tiros, sinal que havia sido combinado com a guarnição militar sediada no Castelo do São Jorge para estes começarem a disparar compassados tiros de artilharia. Simultaneamente, todas as igrejas da cidade tocam a rebate os sinos. Nos restantes quartéis de Lisboa, os militares, em parada, desembainham as espadas, colocando-as inclinadas para a terra, prestando, assim, uma última e sentida homenagem à soberana.

Ao entardecer, após o regresso da Família Real ao Palácio das Necessidades, o rei regente dirige-se às cavalariças para ver as condições em que se encontra o Trovão, seu cavalo favorito:

— Boa tarde, Alfredo!

— Boa tarde, Majestade! Os meus sentimentos pelo falecimento de Sua Alteza Real, a Rainha!

— Obrigado, Alfredo! – responde D. Fernando II, com o semblante ainda carregado por uma imensa dor. — Amanhã, pelas oito horas, vou sair do palácio para me deslocar ao Regimento de Lanceiros N.º 2, na Ajuda. Preciso que, nessa altura, o Trovão já esteja devidamente preparado com arreios cerimoniais!

— Vossa Majestade pode ficar descansado! Vou imediatamente tratar do assunto!

Este pedido do monarca deixa Alfredo preocupado, pois não quer faltar, nessa noite, a uma importante reunião de simpatizantes dos ideais republicanos onde, pela primeira vez, irá usar da palavra uma figura de topo deste ainda embrionário movimento.

Traz, para junto do Trovão, a sela real e os arreios necessários, disponibilizando-lhe uma ração reforçada. Quando regressasse, trataria de limpar e pentear o animal antes que o rei o viesse buscar.

Quando chega à reunião, já a figura de topo está a pronunciar o seu discurso. Aproxima-se um pouco mais e, para seu espanto, vê que se trata de mestre Teodósio, seu professor da disciplina de Ideologia, Gramática Geral e Lógica da altura em que frequentava o Liceu Central de Lisboa. Aparenta estar um pouco mais velho, mas a sua comprida barba negra, colmatada por um farfalhudo bigode e umas lunetas descaídas sobre o nariz, não lhe deixam qualquer dúvida sobre a sua identidade.

Assim que todos os palestrantes terminam as suas intervenções, o moço da estrebaria dirige-se seu antigo professor:

— Mestre, lembra-se de mim?

— Lembro-me perfeitamente. O Alfredo era o aluno mais brilhante da minha aula! Deixou, de repente, de aparecer. O que lhe aconteceu?

— A aristocrata que pagava os meus estudos faleceu e tive de me empregar.

— Foi realmente uma pena! – responde o mestre Teodósio, poisando a mão sobre o ombro do seu antigo aluno. — Então, onde está a trabalhar?

— Trabalho nas cavalariças do Palácio das Necessidades! – responde, um pouco a medo, Alfredo.

— Uma pessoa com os seus estudos e capacidade intelectual está a trabalhar numas cavalariças? E ainda por cima pertença da Família Real! – exclama, espantado, Mestre Teodósio. — Como é que um simpatizante da causa republicana pode ter tal emprego?

— Foi o único que consegui!

— Despeça-se já! Acabo de fundar um jornal com outros simpatizantes do movimento republicano e preciso que colabore comigo na divulgação dos nossos ideais. O dinheiro que lhe iremos pagar deve chegar para retomar os estudos liceais!

Encantado, o moço da estrebaria responde:

— A oferta do Mestre é, para mim, uma grande honra!

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Notas

A imagem representando a chegada a São Vicente de Fora dos restos mortais de D. Maria II foi copiada de uma litografia publicada na Revista Estrangeira n.º 3, de 19 de novembro de 1853

Ligações aconselhadas

Página oficial do Mosteiro de São Vicente de Fora



Túmulo de D. Maria II, no Mosteiro de São Vicente de Fora


© Jorge Francisco Martins de Freitas.
Proibida a reprodução sem autorização prévia do autor.


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